terça-feira, 22 de setembro de 2009

Na livraria

Eu nem sabia direito o que estava fazendo ali. Passei horas encarando os livros. Folheava alguns, em outros apenas passava as mãos, para sentir a textura da capa. O segurança me olhava de um jeito desconfiado e a sensação de parecer suspeita me deixava desconfortável, mas me sugeria um pouco de desafio. Ele não podia falar ou fazer nada, apenas pensar, duvidar do meu caráter, sugerir à vendedora que ficasse de olho em mim, mas não podia mesmo fazer nada, porque não sabia quem eu era, o que eu poderia fazer. A verdade é que eu não poderia fazer nada mesmo, mas ele também não sabia disso.

Eu nunca roubei nada. Quando era mais nova, me faltava coragem; todas as meninas do colégio entravam nas lojas, socavam os bolsos de canetas e chocolates e saíam triunfantes. Trocavam entre si, davam de presente para outras meninas, mas nunca me davam nada. Diziam que era para que eu deixasse de ser covarde. Eu ficava com raiva e chorava, trancada no banheiro da escola. Com o passar dos anos, algumas cansaram, outras foram descobertas pelas mães e eu não precisei mais tentar criar coragem.

Ali, na livraria, minha única intenção era irritar o segurança. Eu me sentia fraca e deprimida, tinha escolhido aquele lugar para fugir de tudo o que me atormentava do lado de fora. Não era justo que ele me olhasse com toda aquela desconfiança, eu merecia um pouco de pena, pelo menos pela minha aparência triste e cansada. Eu sentia pena de mim, e ao contrário do que minha mãe costumava dizer, isso não era ruim. Aliás, foi a melhor sensação que eu tive naquele mês.

Eu já tinha me cansado da brincadeira, agora a cara sem expressão do segurança é que estava me irritando. Resolvi me arrastar até o café e tomar alguma coisa.

Assim que eu sentei, ela apareceu. Era bonita; cabelos louros, menos lisos que os meus, mais alta do que eu, mais magra do que eu. Eu mal conseguia pensar. Reparei na roupa: ela estava vestida da forma mais elegante que não poderia estar naquele dia. Um vestido leve, a sandália alta que deixava os pés bem feitos a mostra. Uma medalha pequena em um cordão finíssimo. Olhei pra mim: desarrumada, meus cabelos estavam sem vida, a franja grudada na testa, cheia de bijuterias que disfarçavam a minha falta de brilho. Vestia quase um pijama. Senti vontade de chorar, mas nenhuma vontade de ir embora. Eu queria ficar ali o máximo de tempo que eu pudesse, só contemplando aquela pessoa que não sabia a importância que tinha na minha vida.

Ela parecia calma e extremamente feliz. Passava a impressão de nunca ter passado por qualquer problema, que nunca tinha se preocupado, pensado se as coisas são mesmo da forma como ela pensa que são ou se perguntado se era mesmo amada. Ela inspirava certezas e eu tinha a resposta para todas as dúvidas que ela deveria ter. Ou achava que tinha.

Senti vontade de chegar mais perto. Quando levantei, minhas pernas tremiam de forma vergonhosa. Caminhei devagar. Eu estava sentindo uma dor terrível no peito, umas pontadas fortes. Não é nada, só tensão – eu pensei – e me debrucei no balcão da forma mais corajosa que consegui. Estávamos separadas por uma pilha de livros em promoção.

O vestido era ainda mais bonito de perto, todo delicado e esvoaçante. O decote era bem grande e por um instante eu fiquei imaginando como eram os seus peitos, os peitos que ele via, que ele beijava e admirava. Um enjôo forte tomou conta de mim, me fazendo engasgar.

Ela me olhou.

Os olhos verdes, lindos, me encaravam e eu não conseguia desviar o olhar.

Dividíamos o mesmo homem. O mesmo homem havia olhado nos meus olhos escuros e naqueles olhos. Ouvíamos os mesmo suspiros, a mesma voz, a mesma risada. O mesmo homem pedia para ser beijado por nós duas. Será que ele pedia daquele jeito pra ela também? O mesmo homem era amado por duas mulheres que estavam frente a frente e uma delas não imaginava a importância daquele momento.

E eu tinha imaginado, muitas vezes. Que injustiça, eu pensei.

Agora, ela estava ali na minha frente e eu não sabia o que fazer. E se eu contasse tudo? Ele não queria mais nada comigo, me maltratou, disse que eu estava velha demais pra isso, disse pra eu tomar jeito, ficar com a minha família. Como se eu tivesse passado tantos anos com ele por libertinagem, por falta de vergonha na cara, só pra desrespeitar meu marido, meus filhos. Como se essa paixão que eu sinto, que não larga de mim, que me atormenta e não me deixa viver, fosse escolha minha.

Eu era bonita, que nem ela. Eu era uma promessa. Todo mundo falava que eu ia ser um espetáculo de mulher, que eu ia ter sucesso no que eu escolhesse pra fazer. E eu podia ter escolhido qualquer coisa mesmo. Mas escolhi esse homem, e achei que ele podia fazer parte da minha vida extraordinária, e ele nem teve essa chance porque essa vida passou longe de mim.

Decidi não contar nada, e nem foi por ele. Minha covardia me fez pensar que se eu contasse, ele ia querer se vingar e contar tudo pro pessoal lá de casa também, e isso eu não ia agüentar, eu nunca tive medo de acabar sozinha, porque pra mim essa possibilidade nunca existiu. Mas naquela hora eu senti medo, aí não contei. Além disso, eu pensei nela, juro. Imaginei a reação, o susto, a decepção, a cara de surpresa, o choro... E me senti tão culpada que a pontada veio mais forte do que da outra vez.

Coloquei a mão no peito. Doía tanto que eu tive que apoiar a outra mão no balcão e acabei derrubando uma pilha de livros no chão. Ela se assustou e ficou me olhando. Tentei abaixar pra catar tudo, mas foi ainda pior, eu já não conseguia respirar e caí no chão. Que vergonha, eu pensei. Quanto mais força eu fazia, mais doía e eu não conseguia respirar de jeito nenhum. Vi quando ela pegou o celular e chamou a ambulância. Apaguei por alguns minutos.

A primeira coisa que eu vi quando acordei foi um par de olhos enormes que sorriam pra mim. Olhei pra baixo e comecei a chorar quando percebi que ela segurava a minha mão.Eu só chorava, não conseguia dizer nada e ela afagou os meus cabelos, tirou minha franja dos olhos e repetia "Vai ficar tudo bem, tudo bem".Eu me senti enlouquecer, comecei a prestar atenção no carinho dela e na voz, só pra sentir exatamente o que ele sentia quando ela encostava nele. As mãos macias, a voz suave, tudo doía demais. A ambulância parou, ela desceu, os médicos me puxaram. Eu estava totalmente imobilizada, tinham me amarrado na maca indigna.

Do lado de fora, meu marido me esperava. Ela foi até ele, trocaram umas palavras,só consegui ouvir o agradecimento.Ele a abraçou. Ela voltou, se debruçou e sussurrou no meu ouvido: “Seu marido está aí, fique com ele.”.

E eu fiquei.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

terça-feira, 23 de junho de 2009

Do outro lado da mesa.

Este texto está sujeito a alterações. Quero aproveitar essa fase de inspiração e resolvi postar logo. Sugestões?

Adoraria estar longe dali. Tentava se concentrar na conversa, mas quanto mais tentava, mais entediantes pareciam ficar aqueles homens, parecia que não tinham mais nada a dizer, e por isso falavam sem parar sobre aquele conhecimento inútil, adquirido em tantas outras reuniões como aquela, que só de imaginar lhe causavam arrepios.

Sabia que não sairia tão cedo, afinal a irmã, que a convidara, parecia estar bastante entretida. Começou a pensar em maneiras de diversão. Passou rapidamente o olhar pela mesa e encontrou um que lhe desconcertou. Ele a encarava de um jeito tão intenso que ela chegou a pensar que era só um olhar perdido, mas logo mudou de idéia quando percebeu que ele não desviara. Ele não era muito atraente, não era bonito nem feio,não era charmoso, mas lhe despertou interesse, principalmente quando lembrou que ele tinha sido o único que não tinha tentado puxar conversa a noite toda.

Quando pensou nisso, sentiu uma leve ferida em seu orgulho. Ela era sempre desejada, a que os homens se desdobravam para receber aquela atenção indiferente, que ela fazia questão de aprimorar a cada nova investida masculina. Sempre tinha sido assim, talvez por isso tivesse tão poucas amigas. Sentia falta disso, mas nunca admitia; preferia dizer que as mulheres eram muito competitivas e inseguras, e que por isso, preferia a companhia vazia dos homens.

Nunca tinha se apaixonado e disso não sentia falta mesmo. Os homens, na verdade, não lhe interessavam. Desde a época do colégio olhava com desprezo para todas as meninas que sonhavam com o homem ideal e fazia questão de demonstrar, fazendo graça de todas as histórias que contavam. Assim, aos poucos, começou a ser excluída de todos os grupinhos risonhos e escandalosos de meninas descontroladas.

Na verdade, ela era apaixonada por si mesma. Era um amor tão grande, que não tinha espaço mesmo para mais ninguém. Sentia-se extremamente bonita e fazia questão de cuidar de cada parte do seu corpo para que essa sensação durasse mais alguns anos. Não fazia questão de ser inteligente, mas procurava se informar para nunca ser motivo de chacota. Apesar de tudo, sabia que a mulher burra perde a graça, e ela nunca perdia a graça.

Aquela noite parecia começar a ficar mais interessante, o ser esquisito continuava a observá-la e não dizia nada.Resolveu investir; mais um na sua lista de apaixonados que se tornavam patéticos em quesão de dias. Ela começou a mexer nos cabelos: afrouxou o coque, deixando fios curtos e negros espalhados pelo pescoço e ombros. Quando o anfitrião serviu-lhe mais uma taça, agradeceu com um sorriso largo e olhou novamente para o homem à sua frente. Ele não olhava mais. Quem era esse idiota que não olhava justamente quando ela começou a querer chamar sua atenção? Começou a pensar em alguma maneira de chamá-lo de volta, mas estava tão desconcertada com a sua própria patetice que não conseguia.

Levantou o olhar e ele a encarava novamente. Decidiu que era hora de agir; ouviu quando o que parecia ser o amigo mais próximo fez uma pergunta sobre a safra do vinho. Ele deu de ombros e ela prontamente respondeu, complementando com a origem e falando sobre uma viagem que tinha feito, onde o provou pela primeira vez. O amigo, surpreso com a súbita animação daquela que – esperançoso em sua embriaguez – ele acreditava que poderia terminar a noite em sua cama, ouviu com toda a atenção o relato da mulher.

Enquanto isso, os grandes olhos verdes e expressivos a encaravam novamente, dessa vez com a testa franzida e a expressão de desdém que – pensou - ela deveria estar fazendo. Impunemente, deu uma leve risada e desviou o olhar, iniciando uma conversa com a menina que tinha acabado de chegar; diziam que era a sobrinha do dono da casa.

Estava atordoada. Mal conseguiu recuperar o fôlego e percebeu que sua história nada tinha a ver com o que o amigo tinha perguntado. Tinha feito papel de idiota mais uma vez e estava começando a suar frio, nunca tinha se sentido assim. Num último gesto de desespero e pavor pela proximidade da primeira derrota, tentou iniciar um assunto qualquer; reclinou o corpo para frente e, olhando só para ele, comentou como seria bom estar em outro lugar,mais animado. Ele olhou de novo com a mesma cara da primeira vez e respondeu o “não” mais gelado que podia e virou-se de volta para a garota sorridente ao lado.

Completamente fora de si, derrubou a taça e caiu em prantos. Ele levantou, caminhou até ela, levantou sua cabeça, olhou em seus olhos escuros e envergonhados. Sorriu com carinho, ignorando o resto da mesa, que olhava incrédulo para a cena. Pegou-a pela mão e saíram sem se despedir.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Mar e Lua


"Nasceram no mesmo ano.Os pais eram amigos, moravam na mesma quadra. Brincaram juntas, iam juntas ao colégio, ficaram mocinhas com diferença de dias. Ás vezes também dormiam abraçadinhas. Coisa de adolescente, desculpavam as mães, um pouco desconfiadas de tanto grude.

Acabaram se apaixonando.

O amor tão urgente delas durou bem mais do que se previa. Anos depois, os pais se acostumaram.

Um belo dia elas resolveram casar e casaram. Com diferença de dias."



Pra você!

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Moral da história...

A única coisa que conseguia fazer era olhar pela janela. Pelo menos o dia estava sendo condescendente com ela: estava melancólico, triste. A Lagoa estava cinza, até a chuva parecia sem vontade de viver, mal se fazia perceber, caía bem fininha e depois parava. Lá de cima ela acompanhava com os olhos alguém que corria ou passeava com o cachorro, e cada vez que alguém passava ela tentava imaginar o motivo de estarem ali. Por que estavam na rua em um dia tão terrível? Não teriam amigos, seriam sozinhos ou estariam brigados com a família? Ou estariam ali só para provocá-la, mostrar que, por mais que ela quisesse acreditar, ainda havia movimento no mundo e conseqüentemente na sua vida?

Ela não queria acreditar. Havia passado anos achando que bastaria casar e todos os problemas vomitados na sala do analista desapareceriam na lua de mel. Tinha sido criada para isso. A família a cobrava, todas as amigas já estavam indo para o primeiro filho. Derramava-se em prantos todas as vezes em que ele dizia que não queria casar, que nunca pretendeu ter filhos e que não mudaria por sua causa. Quantas vezes parou no hospital, empanturrada de remédios e teve que ser buscada pelos pais, que olhavam acusadoramente para o namorado da filha, que abaixava a cabeça e dizia que tentaria resolver o problema.

E não resolvia. Quanto mais ela pedia, menos ele tinha vontade de realizar o seu desejo. E voltavam todos para a clínica novamente. Um dia o pai resolveu acabar com tudo. Homem importante, não queria mais correr o risco de algum repórter mais esperto vender jornais às suas custas. No quarto, repleto de flores e balões, pegou o genro pelo braço e levou para o corredor. Disse que ou casavam-se ou a filha se mudaria, nunca mais seria vista no país. Além disso, como ele pretendia ser um engenheiro de sucesso fazendo uma desfeita dessas para uma família tão boa e honesta? Ofereceu a festa, o apartamento e o labrador.



---X---

Começaram a namorar em uma festa da empresa da família dela. Ele tinha trabalhado na construção do novo shopping da família e estavam todos comemorando a inauguração. Havia se formado há menos de um ano e via naquele emprego a sua grande chance de deixar de ser um ninguém, como sua mãe dizia. Filho do porteiro de um prédio no Leblon, tinha estudado a vida toda bancado pelo patrão dos pais. Queria terminar seus projetos no Brasil e estudar fora, abandonar de vez o recalque de ser sustentado e de ser sempre lembrado disso.

Ela tinha acabado de voltar de uma longa viagem pela Europa com as amigas. Estava inconsolável com o fim do namoro com um espanhol, que disse que não iria para o Brasil com ela. Quis ficar por lá, mas o pai disse que ou voltava ou começava a trabalhar. Voltou. Na festa, foi avisada por uma tia do “rapaz bonito” que estava na festa. Apaixonou-se imediatamente e deu um jeito de ser apresentada.O jeito de princesa do papai, a desenvoltura e inteligência impressionaram o garoto. Começaram a namorar na mesma noite e um mês depois ele estava contratado.

Alguns meses depois, ela começava a insinuar a sua enorme vontade de casar. Não admitia que um homem que tinha dado a sorte de estar com ela não quisesse casar imediatamente. Ele gostava dela, mas não se sentia preparado para casar, nunca tinha sentido vontade de ter filhos. Na verdade, uma namorada estava fora de seus planos quando a conheceu, e ela ficava transtornada quando ele dizia isso. Queria continuar com a sua vida, não tinha abandonado a ideia de morar fora, de se especializar, ficar por lá de vez.Por enquanto,queria continuar tendo a liberdade de escolher, mas ela não parecia interessada em ser abandonada outra vez, tinha calafrios só de pensar, chorava quando ele falava em viajar.

----X----


Depois da conversa com o sogro, na balança, o conforto, o medo do fracasso e um resto de amor sufocado falaram mais alto. Seis meses depois, casaram-se. Ela estava radiante. Todas as revistas de noivas estavam presentes e ela era o modelo para todas as solteiras da cidade. Por outro lado, o noivo recebia a todos, cumprimentava, recebia os presentes, mas pouco sorria e não se animou nem quando sua banda preferida entrou no salão; surpresa da esposa, claro.

Quando chegaram de viagem, a casa estava completamente montada. Ele não sabia nem qual era a sua gaveta de cuecas. Sentia vontade de chorar, de quebrar todos aqueles bibelôs e cristais que ele desconhecia a origem. Ela rodopiava e falava sem parar: “viu que casa linda, meu amor?”, “viu como valeu a pena casar?”, “Viu como meu pai te adora?” e seus pensamentos iam se tornando cada vez mais perversos.

Alguns meses se passaram e logo começou a cobrança pelos herdeiros. Ele odiava que usassem essa palavra, já que sentia que nada era seu, portanto, ninguém poderia herdar nada. Nos jantares de família, nas festas, parecia que esse era o único assunto que conheciam. Na verdade, já estavam tentando e essa era a nova frustração da mulher. Cada menstruação era uma crise de choro de um lado e do outro, um suspiro aliviado.

Até que um dia, aconteceu. O papel do exame esfregado na cara lhe inspirava terror, era como se estivessem lhe condenando à prisão perpétua por um crime que foi obrigado a cometer. Depois de todas as celebrações e notas no jornal, mais sangue. E uma nova visita a velha clínica de desintoxicação.

A partir daí foram crises de choro, ataques histéricos, cacos de vasos e bibelôs jogados pela sala. Ela o culpava por toda a sua desgraça. Um dia ele chegou, a mulher jogada no sofá, bolas brancas e enormes espalhadas pelo chão. A empregada apareceu, lançou o olhar de acusação que ele conhecia tão bem e naquele momento tudo acabou. Subiu, pegou uma pequena mala e desapareceu.

Pela manhã, a mulher levanta-se, procura pela casa e vê o bilhete: “Não precisava, mas preciso ter essa consideração, você e sua família me condicionaram bem. Fui e não volto nem que você se mate. Por mim, seria ótimo até.” Não derramou uma lágrima, estava em choque. Catou as pílulas, roupas e cacos e foi tomar banho. Sabia que tinha exagerado, sabia que tinha feito o homem que amava sofrer, mas parecia que até aquele momento, até ele deixar bem claro o quanto a odiava, ela não tinha se dado conta.

Seu cérebro parecia estar funcionando novamente. Sentia-se grande, ocupando espaço demais no chuveiro, na casa, no mundo. Pela primeira vez em cinco anos, tomava consciência de si. Se vestiu e foi para a sala, ficou horas olhando pela janela, a Lagoa tão cinza quanto parecia a sua vida agora. O cachorro passou e ela chamou-o pelo nome, tentando fazer carinho. O cachorro a encarou e desviou:caiu em prantos.

Finalmente decidiu que se aquelas pessoas estavam ali, correndo apesar da chuva, do tempo feio e da Lagoa cinza, ela deveria fazer o mesmo. Pensou em ligar para as amigas, rever os pais, quem sabe fazer uma viagem, voltar a estudar. Quando já imaginava uma nova vida, uma redenção pelo que tinha feito a todos e a si mesma, o telefone tocou. Levantou-se num sobressalto e o cachorro se assustou. Passou correndo entre suas pernas. Ela desequilibrou-se.

No dia seguinte, uma nota pequena no jornal dizia: “Na Lagoa, mulher se mata após ler bilhete do marido, que a abandonara. Os médicos e a família disseram que ela tinha problemas psiquiátricos e jamais poderia ter sido deixada sozinha. A prisão preventiva do marido já foi decretada, ele é acusado por abandono de incapaz.”

quarta-feira, 22 de abril de 2009

O conto feliz

Eu já não conseguia me conter. Dei um jeito na sala, passei um pano nos móveis, abri as cortinas, fechei, abri de novo. Olhei em volta e parecia que a cena era a mesma, por mais que eu tentasse me ocupar as horas não passavam. Entrei na cozinha, tomei um copo d’água que desceu arranhando a minha garganta. Desisti da ideia de tentar comer alguma coisa antes e eu nem sei o que me fez pensar que eu conseguiria, porque era sempre assim, a proximidade do encontro sempre me deixava tão nervosa que eu tinha que me controlar pra não passar mal.

Eu tinha acabado de me separar, há três dias. Dentro das possibilidades de uma separação tudo tinha corrido bem, sem brigas, sem maiores conflitos. Umas desculpas minhas, umas justificativas dele e nada mais. Tudo muito protocolar, seguindo a lógica do casamento. Chorei durante o dia, mais pela beleza do momento do que por tristeza. Na verdade, eu não chorava por ele, chorava por mim, e chorava de felicidade e um pouco por pena dele, do que eu tinha fingido ser, e pena de mim também.

Olhei o relógio, liguei o som e comecei a cantar pra me acalmar. Quando acabou a música o interfone tocou. Dei uma olhada no espelho da sala, me achei bonita, meu rosto estava iluminado de novo, e eu fiquei parada alguns instantes, me admirando. Atendi o interfone e ele disse um “sou eu” tão bonito, tão íntimo que eu gelei. Será que eu queria aquilo mesmo? Balancei a cabeça. Era claro que eu queria.

Corri pra abrir a porta. Olhar aquele rosto sempre me dava uma sensação infantil, de satisfação por tão pouco. Ele me abraçou, e eu amava aquilo, e ele devia saber disso, porque sempre fazia, e se eu não largasse ele nunca parava de abraçar. Ele perguntou se eu estava bem e eu nem respondi. Eu não queria conversar dessa vez, eu sempre queria, mas naquele dia não. Peguei ele pelas duas mãos e levei pro quarto. Eu suava frio e não entendia o motivo, não queria que ele reparasse.

Paramos no meio do quarto e ele nunca me beijava, chegava o rosto bem pertinho e esperava que eu beijasse, como se isso fosse aliviar a sua culpa. Eu ficava irritada, mas beijava assim mesmo. Naquele dia não, deixei ele chegar bem perto e fiquei imóvel. Ele me olhou confuso e recuou. “Você não quer?”. Que maldito. E o que eu estaria fazendo ali se não quisesse? O que ele estaria fazendo ali se eu não quisesse? Olhei bem fundo em seus olhos, tão escuros que eu me via inteira. E aí, pela primeira vez ele fez o que eu queria, me puxou e beijou com uma paixão que eu tinha recebido poucas vezes na minha vida, todas dele.

Daí pra frente, tudo o que aconteceu foi na mesma freqüência. Dessa vez não era só a urgência de sempre, enorme, mas cautelosa. Ele não foi delicado, não me pegou com medo de me machucar, com culpa, aquela culpa ruim, quase pedindo desculpas por estar comigo, por ter me feito gostar tanto dele. Tudo o que ele fazia era decidido, firme e não esperava nada de mim, não me consultava. Ele estava guiando tudo, cada beijo, cada toque e eu nunca tinha me sentido tão realizada.

Senti o corpo cansado desabar em mim, ainda tremendo. Comecei a passar os dedos de leve em cada pedaço de suas costas. Ainda em cima de mim, começou a beijar o meu ombro, e passou para o meu rosto, de uma forma tão carinhosa que doía. Eu não conseguia, e nem queria dizer nada. Eu me sentia extremamente feliz, mas uma felicidade contida, respeitando o momento: naquela hora não cabia nenhuma demonstração de amor, nenhuma palavra.

Isso sempre tinha sido um problema pra mim. Eu sentia uma vontade enorme de falar alguma coisa, de verbalizar meu carinho, mas não fazia. Algumas vezes porque não cabia e outras por medo da reação dele. Só que naquele dia não me deu vontade de falar um “eu te amo” nem nada do tipo, cheguei a me sentir até um pouco ridícula pelas vezes anteriores. Eu amava sim, mas não precisava dizer, ele sabia e me poupava o constrangimento. Além disso, eu não o queria para mim e talvez nunca quisesse, não fazia sentido dizer.

Depois da euforia de entender o que se passara comigo durante todos esses anos de dúvida eu tive curiosidade de saber o que ele sentia. Olhei pro lado, ele estava entretido com o celular, quieto. Cheguei a esboçar a pergunta, ele ficou esperando e eu desisti. Se eu nunca tinha sido capaz de dizer, não merecia escutar. Foi então que ele perguntou: “quer que eu volte amanhã?” e então eu entendi. O que nos mantinha era a dúvida, a tensão de não saber exatamente o que se passava com o outro. Eu estava radiante. Sorri, disse que sim e levantei pra abrir a porta, já imaginando dias ainda melhores.


Acompanhamento em tempo real da Anna e do Lelê!

domingo, 11 de janeiro de 2009

O resto é seu

Andei de um lado pro outro durante uns cinco minutos. Ia até a cozinha, voltava pra sala, ia de novo até a cozinha, pegava alguma coisa, voltava pra sala. O apartamento parecia estar ficando maior, mais triste. Eu estava sentindo uma agonia, uma vontade de chorar, e o choro não vinha, aí me deu vontade de vomitar, mas vomitar dava trabalho e eu precisava pensar, não podia perder tempo.

Fiquei imaginando como ela tinha tido coragem, depois de dois anos, só dois anos, me largar assim, sem avisar, sem conversar, sem me dar uma chance de convencer ela de que isso era uma besteira, que eu amava ela independente de qualquer coisa, e deixar ela dizer que eu falava demais, que eu era um saco, que eu era entediante, mas que ela ia ficar porque não tinha pra onde ir.E eu nem ia ligar pra isso, porque eu gostava mesmo daquela mulher, porque ela podia ser tudo, menos chata, e toda mulher é chata, e a minha não era, e eu gostava de dizer isso pra todo mundo, e gostava quando falavam isso pra mim.

Mas ela foi mesmo assim. Fiquei pensando nela, no corpo magrinho, branquelo, nos cabelos compridos, que ela queria cortar e eu nunca deixava, ficava pedindo por favor pra ela não cortar, que o cabelo era lindo e ela dizia que eu queria era que ela ficasse com cara de Amélia, e dizia que ia cortar mesmo assim, mas nunca cortava, no máximo aparava as pontas e voltava do salão com a cara triunfante e eu fingia que estava decepcionado, mas nem dava pra notar a diferença.

Ela era bonita demais. Não era nenhum mulherão, mas chamava atenção, tinha as coisas certas no lugar certo, tudo combinava. Combinava tanto que até amante ela arrumou. Passou dois meses saindo com um ex-namorado. Não fez a menor questão de esconder, pelo contrário, foi ela que me contou. Chegou do trabalho um dia, se arrumou toda e disse que ia sair com o cara, assim na maior naturalidade. Qualquer um teria batido, teria humilhado, ou pelo menos tinha colocado pra fora. O que eu fiz? Pedi pra ela parar, tirei quinze dias de férias e fomos pra Bariloche, que ela adorava. Porque não existe mulher sincera e, apesar de tudo, a minha era. Até demais.

Ela era engraçada. Quando bebia ficava alegre, sorridente, e as mulheres sempre ficam bêbadas demais, mas a minha não ficava, nunca passava vergonha. Eu adorava sair com ela, sentar num bar e passar a noite toda. Que homem faz um programa desses com a mulher? Eu fazia, e gostava muito, porque ela era divertida, me fazia rir, sacaneava todo mundo, virava a sensação de qualquer lugar. Eu tinha o maior orgulho.

Comecei a pensar que ela ia voltar. Tinha acabado de se formar, depois de conseguir um empreguinho com muito esforço, não tinha onde morar e não ia querer voltar pro apartamento da mãe, que ela detestava. Além do mais, eu era um marido bom, fazia de tudo por ela e no fim das contas, toda mulher acaba voltando.

Andei mais uma vez pela sala, passei na cozinha, peguei uma cerveja na geladeira e relaxei. Fiquei umas três horas olhando pra porta, bebendo e esperando ela entrar como se nada tivesse acontecido, pegar uma cerveja, ligar a televisão e sentar do meu lado, calada.

Mas ela não chegou. Deve ter passado a noite na casa de uma amiga – eu pensei – e fui dormir também. Quando entrei no quarto, no nosso quarto, não tinha nada que pertencesse a ela, um brinco, um lenço ou um isqueiro, nada. Ela tinha levado tudo.Mal registrei o vazio do quarto, vi uma sacola fechada em cima da cama. Pensei até se podia abrir a sacola, que ela podia ficar irritada comigo se fosse alguma coisa dela, mas abri assim mesmo. Dentro da sacola, um chumaço de cabelos, os cabelos dela. A primeira coisa que me ocorreu foi tentar imaginar como ela tinha ficado sem aquilo tudo. Logo depois, entendi a mensagem. Toda mulher acaba voltando, mas a minha não, e talvez eu não tivesse amado tanto se não fosse assim. Afundei a cabeça no travesseiro e chorei conformado até dormir.