quarta-feira, 22 de abril de 2009

O conto feliz

Eu já não conseguia me conter. Dei um jeito na sala, passei um pano nos móveis, abri as cortinas, fechei, abri de novo. Olhei em volta e parecia que a cena era a mesma, por mais que eu tentasse me ocupar as horas não passavam. Entrei na cozinha, tomei um copo d’água que desceu arranhando a minha garganta. Desisti da ideia de tentar comer alguma coisa antes e eu nem sei o que me fez pensar que eu conseguiria, porque era sempre assim, a proximidade do encontro sempre me deixava tão nervosa que eu tinha que me controlar pra não passar mal.

Eu tinha acabado de me separar, há três dias. Dentro das possibilidades de uma separação tudo tinha corrido bem, sem brigas, sem maiores conflitos. Umas desculpas minhas, umas justificativas dele e nada mais. Tudo muito protocolar, seguindo a lógica do casamento. Chorei durante o dia, mais pela beleza do momento do que por tristeza. Na verdade, eu não chorava por ele, chorava por mim, e chorava de felicidade e um pouco por pena dele, do que eu tinha fingido ser, e pena de mim também.

Olhei o relógio, liguei o som e comecei a cantar pra me acalmar. Quando acabou a música o interfone tocou. Dei uma olhada no espelho da sala, me achei bonita, meu rosto estava iluminado de novo, e eu fiquei parada alguns instantes, me admirando. Atendi o interfone e ele disse um “sou eu” tão bonito, tão íntimo que eu gelei. Será que eu queria aquilo mesmo? Balancei a cabeça. Era claro que eu queria.

Corri pra abrir a porta. Olhar aquele rosto sempre me dava uma sensação infantil, de satisfação por tão pouco. Ele me abraçou, e eu amava aquilo, e ele devia saber disso, porque sempre fazia, e se eu não largasse ele nunca parava de abraçar. Ele perguntou se eu estava bem e eu nem respondi. Eu não queria conversar dessa vez, eu sempre queria, mas naquele dia não. Peguei ele pelas duas mãos e levei pro quarto. Eu suava frio e não entendia o motivo, não queria que ele reparasse.

Paramos no meio do quarto e ele nunca me beijava, chegava o rosto bem pertinho e esperava que eu beijasse, como se isso fosse aliviar a sua culpa. Eu ficava irritada, mas beijava assim mesmo. Naquele dia não, deixei ele chegar bem perto e fiquei imóvel. Ele me olhou confuso e recuou. “Você não quer?”. Que maldito. E o que eu estaria fazendo ali se não quisesse? O que ele estaria fazendo ali se eu não quisesse? Olhei bem fundo em seus olhos, tão escuros que eu me via inteira. E aí, pela primeira vez ele fez o que eu queria, me puxou e beijou com uma paixão que eu tinha recebido poucas vezes na minha vida, todas dele.

Daí pra frente, tudo o que aconteceu foi na mesma freqüência. Dessa vez não era só a urgência de sempre, enorme, mas cautelosa. Ele não foi delicado, não me pegou com medo de me machucar, com culpa, aquela culpa ruim, quase pedindo desculpas por estar comigo, por ter me feito gostar tanto dele. Tudo o que ele fazia era decidido, firme e não esperava nada de mim, não me consultava. Ele estava guiando tudo, cada beijo, cada toque e eu nunca tinha me sentido tão realizada.

Senti o corpo cansado desabar em mim, ainda tremendo. Comecei a passar os dedos de leve em cada pedaço de suas costas. Ainda em cima de mim, começou a beijar o meu ombro, e passou para o meu rosto, de uma forma tão carinhosa que doía. Eu não conseguia, e nem queria dizer nada. Eu me sentia extremamente feliz, mas uma felicidade contida, respeitando o momento: naquela hora não cabia nenhuma demonstração de amor, nenhuma palavra.

Isso sempre tinha sido um problema pra mim. Eu sentia uma vontade enorme de falar alguma coisa, de verbalizar meu carinho, mas não fazia. Algumas vezes porque não cabia e outras por medo da reação dele. Só que naquele dia não me deu vontade de falar um “eu te amo” nem nada do tipo, cheguei a me sentir até um pouco ridícula pelas vezes anteriores. Eu amava sim, mas não precisava dizer, ele sabia e me poupava o constrangimento. Além disso, eu não o queria para mim e talvez nunca quisesse, não fazia sentido dizer.

Depois da euforia de entender o que se passara comigo durante todos esses anos de dúvida eu tive curiosidade de saber o que ele sentia. Olhei pro lado, ele estava entretido com o celular, quieto. Cheguei a esboçar a pergunta, ele ficou esperando e eu desisti. Se eu nunca tinha sido capaz de dizer, não merecia escutar. Foi então que ele perguntou: “quer que eu volte amanhã?” e então eu entendi. O que nos mantinha era a dúvida, a tensão de não saber exatamente o que se passava com o outro. Eu estava radiante. Sorri, disse que sim e levantei pra abrir a porta, já imaginando dias ainda melhores.


Acompanhamento em tempo real da Anna e do Lelê!

10 comentários:

Yana Campos disse...

Você escreve maravilhosamente bem, esse texto reflete tudo em detalhes bonitos e verdadeiros. Dá pra ver, sentir, temer tudo aquilo que vc descreve.

Estou cá, perplexa e já senti tudo isso, não faz muito tempo.

Continua moça, não para não.

Beijos.

Maria Fernanda disse...

Ahhhhh..finalmente!
E olha que nem foi um final tão feliz assim,vc deu uma enganada!
De qualquer jeito ficou ótimo!
Bjs!

Luana Garcia disse...

Como sempre, lindo. Ás vezes a gente te cobra e você diz que não tem tantas coisas pra escrever que não sabe por onde começar...deu pra perceber! E valeu a pena esperar...adorei o conto, consegui sentir direitinho tudo o que vc descreveu como se fosse a moça do conto. Muito bom!
Até a próxima!

Leandro disse...

Cara, me impressiona o jeito que escreve! A maneira que a senhora coordena suas ideias é divina.. Puxando muito o seu saco agora (sem ser um MALA rs): É só querer que pode muito bem viver disso!!! =D

ps: Adorei os créditos!!

ps: Ainda acho que ele é casado.. rsrsrsrs

Anna Bittencourt disse...

Eu ainda prefiro o final falando que ele é gay .. hahahahahaha

Anna Bittencourt disse...

Existia essa possibilidade, né ?
Ou isso foi fantasia da minha cabeça ? Agora fiquei na duvida.

Qualquer semelhança é bla bla bla, certo ?

Laila disse...

ÉEEEEEE
Dos melhores que já li na blogatura que tenho lido
=)
Que bom que atendeu às preces de todos e voltou aos contos.
Maravilhoso.
E gostei das piadinhas dos MALAS

Antonio Laskos disse...

Meu Amor,
O foco é tão preciso, tão bem definido que entramos na mente dos dois e nada mais importa. Dispensamos cenários, detalhes materiais, tudo fica etéreo perto da presença marcante dos pensamentos lindamente colocados de forma precisa, leve, fluída, sensível e inteligente.
Continue sempre...para o nosso deleite!

Anônimo disse...

É a primeira vez que visito seu blog e adorei seu texto! Você escreve com fluência, com desprendimento, a narrativa vai nos envolvendo... Me senti dentro do quarto espiando os personagens. Parabéns!

Rafa disse...

Uaaaaauu!
Antonia, o texto tá tão real que dá pra jurar que tudo isso aconteceu de verdade, muito lindooo!
Quando vc lançar o livro prometo que vou estar na fila do autógrafo!
Haha!
Bjinho!!!