quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Solução

Ela tinha sete anos, mas seu semblante aparentava os trinta anos de uma mulher infeliz. Chorava, limpava as lágrimas, chorava,limpava o nariz, chorava. A empregada, adolescente cearense recém chegada, a abraçava, menos para consolar a menina do que pra se acalmar. Mais uma vez ela assistia ao espancamento da mãe. O pai, transtornado, arremessava a cabeça da mulher contra a parede repetidamente. Ela caía, ele chutava. Ela suplicava pra que ele parasse, ele a ignorava com socos, tapas e o que mais lhe ocorresse.

A menina foi ver onde estavam os irmãos menores. As crianças brincavam com bonequinhos, sentados no chão. Olharam como se quisessem perguntar por que ela estava chorando. Fungou aliviada, eles não pareciam entender o que estava acontecendo, e isso a deixava feliz. Como era muito pequena, não conseguia alcançar a maçaneta da porta. Puxou até onde conseguia e deixou encostada. Passou pelo quarto dos pais com os ouvidos tapados, os gritos continuavam.

Quando o pai saiu de casa, automaticamente ela parou de chorar. Era sempre assim. Não foi ao quarto da mãe, não tinha a menor vontade de olhar os olhos roxos, as marcas enormes espalhadas pelo corpo, o choro contido, para não doerem os músculos. Foi sozinha para o quarto e deitou-se com os irmãos, que já dormiam profundamente. Cansada, apagou em menos de cinco minutos.

De madrugada, despertou. O pai parecia ter acabado de voltar. Ela abriu os olhos, mas permaneceu imóvel. Conforme os passos iam se aproximando, seu coração disparava, conseguia escutar o barulho forte dos batimentos. Ele recomeçaria? Fechou os olhos, fingindo dormir. O homem entrou no quarto das crianças, acendeu a luz e chamou a menina. Imediatamente ela levantou. “Vem pra sala, deixa os meninos dormirem”.

A voz que era tão doce, que exibia a filha aos amigos, que a levava à biblioteca, que ensinava os números romanos, a deixava apavorada naquele momento. Pensou na mãe, que não era carinhosa nunca, nem assustadora. Seguia o pai pela casa em silêncio, os olhos ardiam de sono, as pernas doíam. Ele ligou a televisão, era dia de corrida. Ayrton Senna estava na frente, ainda bem. O pai sorriu, elogiou o piloto, tirou um saquinho de chicletes coloridos e deu à menina.

Sentiu uma enorme vontade de chorar. Por quê o pai só era bonzinho assim com ela? O que a mãe fazia de tão errado? Aceitou o presente. “Não vai comer?”, perguntou, cobrando. “Eu já escovei o dente”. Silêncio. O cheiro de álcool e cigarro tomava conta do ar. A garota não se importava, gostava da mistura. Estavam os dois encostados em uma grande almofada em frente à televisão. A pouca mobília da sala deixava os telespectadores sem muitas opções. Incomodado, o pai afrouxou o cinto e tirou de dentro da calça a pistola.

Ela não se mostrou surpresa. Ele gostava de exibir a arma pra filha, já tinha passado algumas tardes ensinando a menina a atirar. Os dedos pequenos não conseguiam puxar o gatilho, e ele se irritava. “Garota idiota”. Não gostava quando ele atirava nos gatos do terreno ao lado da casa, mas não falava nada. Sentia culpa, não queria decepcionar o pai, queria menos ainda deixá-lo irritado. Quando ele cansava da brincadeira, a colocava no carro e levava pro lugar que fosse, como se ela fosse um homem da sua idade.

Ás vezes chegava de mau humor em casa, o que se notava pela batida da porta, e a menina sabia que seu inferno começaria. Atormentava a mulher com coisas do tipo "não fale comigo hoje, não quero ouvir sua voz". Em uma hora lá vinha a mãe perguntar se podia servir o jantar...e ele quebrava os pratos em sua cabeça.

Na sala, o pai parecia não prestar muita atenção na corrida. A cabeça pendia pro lado. Apoiava uma mão no chão e segurava a arma com a outra. A menina contemplou as mãos do pai por alguns minutos. A mãe costumava dizer que as dela seriam parecidas. Olhou para as próprias mãos. Eram maiores do que as das outras meninas, e ela sentia vergonha. O pai agora parecia dormir. Cuidadosamente ela foi tirando a arma do seu colo. Ele rosnou e voltou a dormir. A ação não durou muito tempo. Empunhou a pistola, apontou para a cabeça do pai e puxou o gatilho. Com o tiro, na cabeça, ele se mexeu pouco. Não sentiu morrer. A menina deitou-se no chão, ao lado do corpo, fechou os olhos. Uma paz imensa tomou conta do corpinho magro.

3 comentários:

Laila disse...

Arrepiei

Laila disse...

Vou voltar sim!
Seus textos são de muita qualidade!
O comentário de cima foi curto porque eu achei que resumia tudo. Emocionante. Arrepiante.
Coloquei seu link no blogroll, é merecido.
=)

Marcio Sarge disse...

Obrigado pela visita moça.
Garanto que o prazer foi todo meu já que vim aqui e me deparei com texto forte, bem escrito, arrepiante e que desnuda tudo que tentamos por debaixo do tapete.

Adorei. (sem demagogias)
Beijos e até.